1.Às 07h30, no Pelourinho (Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos) para assistir os cultos e atividades em homenagem à Santa Bárbara (para os católicos) e Iansã (para o candomblé). Afinal, como bem escreveu Cynara Menezes: não existe ateu na Bahia...rs
2.Bela manifestação popular. Chama atenção as imagens afixadas nas paredes com Jesus Negro e traços artísticos que lembram as gravuras dos movimentos de esquerda (a foto abaixo lembrou-me, imediatamente, a capa de um disco do Quilanpayu (grupo chileno da década de 70). Na porta da Igreja Católica, pessoas do candomblé praticam ritos e nas barracas ao longo do largo em frente ao palco montado começam a chegar latas de cerveja, enquanto o vermelho começa a inundar o Pelô, a evidenciar que o comunismo está a tomar conta do Brasil, caso alguma senhora do MBL e quetais visualizasse a cena;
3.Começa o culto. O som dos atabaques ressoam no Largo e os corpos de jovens a idosos acompanham com movimentos de dança num ato que representa uma ousadia contra a repressão ao corpo professada por setores religiosos conservadores. Outras reflexões saltam à mente: essa afluência da cultura afro num culto católico representa "conquista" ou "acomodação"? O que ensina de tolerância esse convívio para o mundo em escalada de conflitos?;
4. O relógio indica 08h30. Hora de partir para a concentração em frente ao Consulado de Cuba em Salvador (situado na Barra - foto abaixo) de onde sairá, às 09h, um homenagem a Fidel. No horário marcado, saímos em caminhada para a praia da Barra em frente ao hospital espanhol com o propósito de arremessar flores ao mar como forma de homenagem ao Comandante. Lá chegando, enquanto a atividade na areia da praia é realizada, um jovem inicia, prostrado no calçadão, a proferir impropérios contra a ação : "vão para Cuba", "procurem um trouxa de roupa para lavar". Inconformado, com a reação pacífica de indiferença, fica irritado e, aos berros, ergue o dedo médio, enquanto ao seu redor pessoas de verde e amarelo passam para a manifestação que se inicia um pouco mais à frente.
4.Finda a homenagem, na dispersão dos militantes comunas, um casal de senhores aproxima-se também aos gritos. Curioso observar que eles vão ficando vermelhos de raiva, o que sem dúvida poderia ser visto como mais uma demonstração de que o comunismo está tomando conta do Brasil. Um espelho nesse momento de "vermelhidão" de seus rostos os levaria ao suicídio? Muito próximo fisicamente, passo, em absoluto silêncio, a observar fixamente seus rostos e expressões corporais que assemelham-se a um surto psicótico. Ódio com ressentimento de classe são demonstrados por senhores de idade avançada até a exaustão, contando com apoio de transeuntes que se dirigem para o ato "contra a corrupção".
5.Findo o espetáculo dantesco e dispersados os militantes de esquerda, dirijo-me para posicionar-me, sorrateiramente (rs), mesmo com camisa vermelha, numa das esquinas das ruas que dão acesso ao Farol da Barra onde será realizado o ato "contra a corrupção". Objetivo: captar a "narrativa" apresentada no ato. Expectativa minha: com a consumação do golpe; a derrota eleitoral impingida à esquerda e a demonstração inequívoca de práticas de "estancar a sangria" pelos golpistas , a alternativa que tende a ser apresentada é chamar os togados e/ou os milicos para a "salvação nacional".
6.Expectativa confirmada. De largada, nos dois trios observo as seguintes faixas com os seguintes dizeres: "Carmen Lúcia, mãe do povo brasileiro", "autonomia para PF", "escola sem partido", "meu partido é o Brasil", entre outros. No chão, setores da chamada classe média alta branca exibem cartazes: "força moro", "todo apoio a lava jato", "corrupção mata" entre outros similares. No mesmo ato, um grupo veste camisa pro "intervenção do povo", mas a faixa exibida clama por "intervenção militar já". No trio, começam os discursos. Inicialmente, é feito um apelo para que todos tirem fotos do ato e socializem em suas redes, numa demonstração de tática de mobilização. E de fato, há uma afluência constante de pessoas, apesar do tempo nublado. São registradas as presenças de pessoas do Judiciário, MP e PF, sem declinar nomes. É anunciada presença de grupo a favor da intervenção militar, com o registro de que "são bem acolhidos".
7.A organização do ato, ao microfone, passa a ler a lista dos deputados que, supostamente, teriam votado "a favor da corrupção", quando, na verdade, houve alterações às "desmedidas" propostas e inclusão do tema crime de responsabilidade para juiz e MP. Ao ler cada nome e respectivo partido são feitos comentários em defesa do MPF, enquanto o público vaia. Ao apontar deputados golpistas, o organizador do ato registra uma espécie de lamento: "apesar de ter votado A favor do impeachment". Enfim, a essência do discurso é de apontar a corrupção como o único e grande mal do país, combinado com a criminalização generalizada da política. Nenhuma menção é feita a 3 características fundamentais da formação histórica do Brasil: desigualdade social, autoritarismo e dependência externa. Não há registro no discurso falado ou nos cartazes sobre PEC do austericidio fiscal, reforma da previdência ou reforma trabalhista. Como a saída não existe na ação política, a alternativa, subliminarmente ofertada, é recorrer aos setores estranhos à suposta podridão da política: togados e militares. Frise-se que, embora minoritários, a narrativa acima descrita potencializa o crescimento dos que atuam a favor da intervenção militar.
8.Impossibilitado de captar a imagem da faixa pro militares a partir da esquina, decido aproximar-me para tirar um foto. Consigo. Mas, ao virar o rosto deparo-me com dois colegas do Judiciário. É o sinal de que está na hora de voltar para casa.
9.Da experiência relatada, além de recomendar a observação da bela festa de santa bárbara/Iansã (independente do credo ou não), entendo que o dia 04 de dezembro deve ser analisado com muita atenção, pois pode representar um marco terrível na história do Brasil. Repito o que venho dizendo: todas as "peças" estão com chances de "xeque-mate" no tabuleiro da luta de classes brasileira, do fascismo à construção de um governo democrático e popular. No atual momento, está última alternativa está na defensiva, mas, muitas vezes, um recuo foi antesala de ofensivas vitoriosas.
10.E o que concluir das observações do perigoso dia 04 de dezembro do fatídico ano de 2016? Persiste a urgência da esquerda (partidária e social) reatar os laços com a classe trabalhadora (atualmente, muito esgarçados), através de algumas ações que devem ser levadas a cabo de maneira COMBINADA/ARTICULADA:
1)Urgente autocrítica de práticas condenáveis e dos erros, limites e contradições das experiências governamentais da esquerda;
2) denúncia, clara e didática, das consequências sociais das medidas golpistas no governo federal, bem como da saída à direita que recorre aos togados ou milicos, mas que implica em supressão da soberania popular sobre os rumos do país e mais exclusão social, face a conivência desses setores com as medidas do governo golpista;
3)superação da estratégia de conciliação de classes, hegemonica no conjunto das organizações da classe trabalhadora nos últimos 21 anos. Para tal, é importante:
3.1) deixar claro que a sociedade, no atual momento histórico, é dividida em classes sociais com interesses opostos e explicar as consequências disso no cotidiano social, político e cultural;
3.2) apresentar um programa socialista, estratégia e tática (a ser amplamente difundidos) que tragam propostas de caráter democrático e popular para solucionar as situações concretas vividas pela classe trabalhadora, enfrentando as 3 características fundamentais da história do Brasil: desigualdade social, autoritarismo e dependência externa.
4) construção da unidade através do fortalecimento e popularização da Frente Brasil Popular, respeitando as organizações que a compõem.
Salvador/BA, 04 de dezembro de 2016.
Cristiano Cabral.